Lier Pires Ferreira
PhD em Direito. Professor titular do Ibmec e do CP2.
27/07/2023
Diásporas são realidades desde sempre presentes na história. Para os cristãos, por exemplo, o mais emblemático dos deslocamentos populacionais foi o cativeiro de Israel no Egito, retratado no livro do Êxodo. O Brasil também é um país de diásporas. Entre nós, uma das mais importantes é a diáspora negra.
Diferentes de outros grupos étnico-raciais, que para cá vieram em geral em busca de melhores condições de existência, os africanos foram trazidos como cativos, sendo desumanizados e subalternizados pela lógica colonial-mercantil.
A escravidão dos africanos no Brasil persistiu por aproximadamente 350 anos. Ao longo deste período, negros e negras tiveram que desenvolver diferentes estratégias de luta e existência. Recentemente, assistindo à prévia do documentário “Sociologia em Movimento - um convite ao protagonismo”, dirigido pela cineasta Janaína Re.Fem, aprendi com o sociólogo Otair Fernandes de Oliveira que um dos sentidos da palavra “reexistir” é “resistir para existir”. Trata-se, portanto, de um movimento dialético, tanto inerte quanto potente, cujo sentido é a perpetuação do corpo, da cultura e da memória.
Os dados do CENSO/IBGE/2022 permitem confrontar diversos sentidos desta “reexistência”. Destacamos três.
O primeiro é o fato de que 1,3 milhão de brasileiros se autodeclaram quilombolas, os remanescentes de quilombos. Foi a primeira vez que um CENSO aferiu essa realidade. A primeira vez após quase 140 anos da Lei Áurea. Logo, é possível constatar que, até aqui, estas populações restaram praticamente invisibilizadas, sem que políticas públicas de inclusão fossem postas em marcha, em que pese o art. 68 da Constituição Federal, que lhes reconhece o direito às terras ancestrais.
O segundo dado é que a maior parte da população quilombola está no Nordeste, em particular na Bahia, no Maranhão e em Pernambuco, primeiro grande espaço da agroindústria no Brasil, cuja cultura-símbolo foi a cana-de-açúcar. Outros espaços, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás, também estão dentre aqueles com expressiva população quilombola, refletindo, de forma mais ou menos precisa, os ciclos econômicos do café e do ouro. Essa dado permite constatar a objetificação das populações negras, coisificadas pelo processo produtivo e deslocada conforme a conveniência dos detentores do capital, posto que relegados à mera condição de fatores de produção.
O terceiro e último é dado é que a maioria dos trabalhadores que ainda hoje atuam no campo são negros. Entretanto, 79,1% das grandes propriedades, cujo tamanho é maior ou igual a 10 mil campos de futebol, pertencem aos brancos. Só 1,% está com os negros. Portanto, quando proprietários, pretos e pretas estão limitados às pequenas propriedades, de cultivo familiar, onde as tradições ancestrais de vida e plantio são revividas a cada safra.
Em seu conjunto, os dados acima evidenciam um fenômeno que só recentemente vem sendo estudado pela comunidade acadêmica: o racismo fundiário. Fruto dileto do colonialismo europeu, ele excluiu os negros da propiredade das terras, alimentando a lógica racialista segundo a qual o dinheiro e o poder devem estar concentrados nas elites brancas. A superação desta dura realidade é mais um dos inúmeros desafios de nosso tempo, aportando um “novo” tema em nossa agenda identitária. Afinal, o Brasil precisa reexistir.