Fortalecendo a segurança pública ou esvaziando o poder dos estados, eis a questão.
Vladimyr Lombardo Jorge
Doutor em Ciência Política. Professor da UFRRJ.
É notável que a discussão acerca da ausência de uma política nacional voltada para a segurança pública tenha surgido agora. O envolvimento da União com esse tema não pode ser considerado algo usual e esperado de um governo de esquerda. Ela decorre da percepção do agravamento do cenário e da constante pressão exercida pelos agentes privados e públicos. Se a administração anterior não apresentou propostas nesse sentido, isso não se deve unicamente ao fato de ser um governo de direita ou liberal em excesso. A questão da “lei e ordem” é, de fato, característica do espectro da direita política. Mas, da escolha por uma “política pública” que, segundo especialistas, se revelou equivocada e perigosa.
A indicação do nome de Ricardo Lewandowski para ocupar o Mistério da Justiça e Segurança Pública seguida por uma crise gerada pela fuga inédita de dois fugitivos da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, levaram a uma inflexão do debate. Isso se deu com a apresentação da proposta de emenda constitucional (PEC) visando atender reivindicações de que o Governo Federal assuma a responsabilidade de combater o crime organizado, reduzir a violência e, consequentemente, abrandar a sensação de insegurança que sentimos diariamente. A intenção é conceder à União mais poderes para coordenar ações nessa área.
A PEC gerou, ao que parece, enorme polêmica. Se aprovada, redefinirá o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), assegurando à União o poder de estabelecer diretrizes gerais a serem seguidas pelos estados no combate ao crime organizado. Podemos, ainda, especular que, politicamente, a medida tem duas consequências potenciais. Primeiro, recuperar o desgaste do governo do PT junto à opinião pública, sobretudo a classe média. Segundo atrapalhar ou, até mesmo, reduzir a capacidade de ação dos grupos que se nutrem da insegurança, ou seja, aqueles que, em artigo publicado recentemente, o professor Lier Pires Ferreira denominou de “reais donos do poder, os que sustentam com ferro, sangue e fogo, seus interesses políticos e econômicos” (Jornal da Cidade, Outubro de 2024).
A PEC é necessária por causa dos limites impostos pela Constituição de 1988. Embora, o Artigo 144 estabeleça o compartilhamento de responsabilidades em relação à preservação da segurança pública, o Artigo 44 estabelece que são os estados e o Distrito Federal os responsáveis pela execução das ações de segurança; a construção e a manutenção de presídios; o comando das forças responsáveis pela ordem e ao crime (Corpos de Bombeiros Militares e Polícias Militares, Polícia Judiciária Civil).
Embora o ministro Lewandowski tenha encaminhado o projeto para avaliação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em junho deste ano, o texto, desde então, encontra-se parado na Casa Civil. Isso, segundo a imprensa, se deve às divergências sobre o conteúdo do texto dentro do Congresso Nacional, entre os governos estaduais e no interior do próprio Executivo federal. Como observamos acima, a alteração constitucional amplia os poderes legais do Palácio do Planalto.
Para contornar as resistências, ainda de acordo com a imprensa, o Governo Federal tem argumentado que o objetivo da proposta não é reduzir a autonomia dos estados, como alegou o governador Ronaldo Caiado (GO), mas permitir que Brasília crie diretrizes genéricas para a área. Para o governador, o que a União deve fazer são acordos internacionais com países limítrofes para combater os crimes que são constitucionalmente da responsabilidade do Governo Federal. A reunião agendada para o dia 31 de outubro é mais uma iniciativa para tentar superar essas resistências.
Após uma reação violenta à mais recente ação desastrosa da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, o governador Cláudio Castro (PL) dirigiu um apelo ao presidente da República, solicitando que este escutasse os Executivos sobre a problemática da (in)segurança pública. O presidente Lula aproveitou a oportunidade e convocou todos os 27 chefes dos executivos estaduais para um encontro. Mais do que ouvi-los, Lula deseja, com a presença do ministro Lewandowski, discutir a urgência e a relevância da aprovação da referida PEC. Tal ação evidencia, simultaneamente, a intenção do presidente de se posicionar como um democrata moderado e demonstrar que não se esquivará desse espinhoso debate. No entanto, além da Fortuna, precisará ter virtù, pois será imprescindível a habilidade para convencer de que a proposta não configura uma perda de poder para os estados e um fortalecimento ainda mais acentuado da União. Assim, nos encontramos, mais uma vez, diante do debate federalista brasileiro: "centralização versus descentralização".