27/11/2024
Se lagosta é peixe, canguru é ave”
Almirante Paulo de Castro Moreira da Silva
Lier Pires Ferreira,
PhD em Direito. Pesquisador do LEPDESP/UERJ e do NuBRICS/UFF
Desde o século XVIII, com a publicação de “A riqueza das Nações”, tornou-se senso comum a tese de que economia liberais dispensam intervenções governamentais ou quaisquer outros organizadores externos, sendo capazes de se autorregularem pela “mão-invisível” do mercado. Na obra prima de Adam Smith, consumidores conscientes escolheriam sempre os melhores produtos e com os melhores preços, de modo que os preços não poderiam subir muito, sob pena dos produtos serem abandonados pelos consumidores, nem declinar muito, sob pena de uma crise no abastecimento. Sob tais fundamentos, os ditos liberais sempre advogam pelo livre-mercado, seja do ponto de vista doméstico, seja no campo das relações internacionais.
Não sou economista, mas, como internacionalista, posso garantir que mercado livre no fiofó dos outros é refresco. Da Inglaterra aos Estados Unidos, passando por Alemanha e Japão, todas as grandes potências capitalistas, que publicamente defendem o livre-mercado, são economias mais ou menos protegidas, onde a liberdade de transacionar no mercado só é grande nos setores em que são mais eficientes que seus competidores externos. É o caso da “Guerra da Carne”, que hoje opõe Brasil e França.
Reeditando a “Guerra da Lagosta”, nos anos 1960, Brasil e França travam uma guerra nada surda em torno da produção de carne, especialmente bovina. No rastro da conclusão do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, finamente trabalhado pelo Itamaraty sob a liderança do presidente Lula, agropecuaristas franceses criaram um caos em Paris, bloqueando estradas e espalhando esterco pelas ruas, dentre outras delinquências, pois se sentem prejudicados com a diminuição iminente dos gordos subsídios públicos que os alimentam. Lá pode, né? Pressionado, o CEO do Carrefour na França, Alexandre Bompard, anunciou que a empresa deixaria de comercializar carnes originárias do bloco sul-americano, em apoio aos agricultores franceses, que seriam prejudicados por produtos que não possuem o mesmo padrão de qualidade e segurança ambiental dos europeus. O quê, cara-pálida?
O agronegócio brasileiro pode ser criticado em vários aspectos, mas a produção rural do país voltada para exportação atende, sim, a todos os requisitos de excelência do mercado global. Por isso, o chororô dos franceses é mais um típico exemplo de que o compromisso dos países centrais com o liberalismo econômico e tão falso quanto uma notinha de R$3,00. Quando estão em vantagem competitiva, bradam aos quatro ventos que os mercados devem ser livres. Quando não, apontam para sanções tarifárias e não tarifárias para proteger seus mercados e seus produtores, mesmo que seus consumidores sejam prejudicados e os índices inflacionários possam subir.
O mesmo já está acontecendo nos Estados Unidos, cuja proteção do mercado interno para as indústrias nascentes do Centro-Norte foi a verdadeira causa da Guerra de Secessão (1861-1865). Ou alguém achou que fosse pela liberdade dos negros? Ah, tá! Hoje, na América, um empoderado Trump promete não apenas taxar em 60% os produtos chineses no mercado local, mas também acena para uma sobretaxa de 25% sobre produtos oriundos do Canadá e do México, que, nas diatribes do protoditador de topetinho, não utilizam seu poder nacional para barrar imigrantes ilegais e o ingresso do Fentanil, o opóide de estimação dos americanos.
Em seu clássico “Chutando a escada”, o sul-coreano Ha-Joon Chang escancara a pressão dos países centrais sobre as nações do Sul Global para ceifar, na raiz, modelos alternativos e soberanos de desenvolvimento. País marcado pela dominação euroamericana, de Portugal aos EUA, o Brasil bem sabe o custo sociolaboral, científico e tecnológico destas hegemonias perversas. O destino de Sharp, Engesa, Fenemê e tantas outras registram muito bem o sucesso dessa estratégia, endossada aqui por políticos e acadêmicos muito bem nutridos por fundos estrangeiros, quando não por tolos que, a custo zero, reproduzem os ideais de dominação estrangeira no país. Ou já esqueceram do estrago geopolítico da Lava-Jato sobre a Petrobras e a própria economia brasileira?
A reação brasileira, orquestrada por produtores e frigoríficos está bem estruturada. Pressionaram Carrefour, Sam’s Club e Atacadão, as três marcas do gigante atacadista francês no país, negando carne às lojas da rede. Até nosso ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, entrou na resistência orquestrada pelo agro. Fê-lo bem. Ao Brasil não interessa uma guerra comercial com os franceses, pois o acordo com os europeus tem ganhos expressivos, em particular para o agronegócio. A França, por seu turno, visa a criar uma situação de pugna para obter apoio entre outros países do bloco, como Itália, Irlanda e Polônia, cujas agriculturas também são fortemente subsidiadas.
O momento é tenso. Por um lado, a Europa enfrenta a concorrência sino-americana, vivendo, talvez, um dos seus piores momentos em termos de competitividade econômica. Logo, precisa diversificar seus parceiros. Já os países do Mercosul avançam cada vez mais para a Ásia, tendo China, Japão e Coreia do Sul como parceiros preferenciais. O megaporto de Chacay, recém-inaugurado pela China no Peru, é a ponta de lança para unir a sul-américa atlântica ao eixo asiático no Pacífico. A Europa está emparedada, mas países como o Brasil também não podem prescindir das aquisições da União Europeia. A “Guerra da Carne” mostra que, no jogo de forças das relações internacionais, a política tende a prevalecer sobre as métricas estritamente econômicas, revelando, ao fim e ao cabo, que liberalismo é hipocrisia.